09 abril 2009


Quando começo a estender a pintura sobre a tela, costuma aparecer uma cabeça monstruosa…

Diante de mim, como se não fosse minha…
Por vezes apoiada em ínfimas hastes que nunca foram um corpo; alimentando-se de si mesma, ou antes, do meu imenso desgosto, sim, sim, dum desgosto não sei exactamente de quê mas para o qual contribuiu uma época inteira, não, três épocas já, e todas tão ruins, tão ricas em derrotas, em bandeiras rasgadas, em mesquinhez, em reles ideais, em arte de viver boa para gado, tão exasperantes, tão exasperadas, e tão, e tão, e tão…
É por causa de todos estes “tão” que tais cabeças irrompem, estas cabeças que são uma só, uma única cabeça vociferante de raiva ou, taciturna e gélida, que pondera o destino.
Diante de mim como se não fossem minhas…
Oriundas da obsessão, do abdómen da memória, do meu âmago, do âmago duma infância que não teve o que devia e que agora nem três séculos de vida poderiam saciar, de tanto, tanto se ver necessitada.
Nascidas nos dias de chuva e sob os tectos baixos, e do calcar das tarefas que nunca hão-se ser cumpridas, e do pressentimento dum futuro de gente chata a aproximar-se já, e de obstinados cretinos.
Vindas dos órgãos mal adormecidos de um corpo repleto de veneno, de fome, de torpor, de antigos saldos de contas e das artérias em tubo de cachimbo dos meus antepassados.
Pisadas, marteladas pela amargura e os golpes da humilhação, ou miserável farol da vontade de me opor.
Diante de mim, não minhas porventura…
Chegando de longe, SOS lançados no espaço por milhares de desgraçados em apuros, bramindo, gemendo, gritando desesperados, virados para nós, e nós surdos que nem portas, formando todos eles sem proveito a grande família dos padecentes…
Diante de mim, sem o saber…
Levadas sem tréguas pelas ondas ínfimas da viva irradiação dos seres que se debatem. As suas dores, os seus esgares, as angústias, logo e em toda a parte televisadas…
Diante de mim…
Abordando tumultuosamente o meu quarto solitário.
Diante de mim, em grande silêncio, que sofro ou me apavoro e surdamente luto pela minha autonomia.

Henri Michaux. Peintures, 1939

31 março 2009


"Manet's became the firts modernist pictures by virtue of the frankness with which they declared the flat surfaces on which they were painted."
Clement Greenberg

11 março 2009

e perante a impossibilidade de 'falar sobre' resta-nos apontar

03 março 2009

Folhas ao Sol

(excerto de um vídeo de Miro Soares)

15 fevereiro 2009

a janela do meu quarto dá para o pátio de entrada. do lado de lá das casas ergue-se solene uma grande chaminé de tijolo donde se solta, sem fim, um fumo leve e frágil que mal se eleva desaparece contra o céu. quando há nuvens — quase sempre — a dissipação acelerada das suas curvas atrás de curvas parece apontar para a lenta transformação das formas das nuvens, ao ponto de me ter ocorrido ser essa a razão para a chaminé estar sempre a fumegar. é que me lembrei de uma história da cabala judia em que uns anjos são criados para louvar deus e como assim que nascem o louvam, assim que o louvam deixam de existir. assim incessantemente, como o fumo da chaminé que mal aparece contra as nuvens desaparece.
nestas coisas pensei eu debruçada na janela para não deixar o fumo do meu cigarro entrar no quarto.